12. o processo é foda
ame o processo ou deixe-o (mas amar ou deixar já será outro processo)
um minuto de silêncio para o texto original dessa newsletter que eu deletei por burrice. e uma risadinha no final porque é irônico perder um texto que estava sendo escrito há dois meses e daí escrever o novo em alguns dias.
se esse texto ficar ruim, vou dizer que o outro era melhor. se esse ficar bom, vou dizer que o anterior era um bom rascunho.
✸ caso você não saiba: no início de maio publiquei um quadrinho curto na Revista Recorte!!! (uma publicação construída por pessoas que admiro muitíssimo sobre temas que cercam o design)
para além das muitas questões pessoais que poderia elaborar aqui sobre ele, quero usá-lo pra puxar o assunto dessa edição. então leia ou releia lá rapidinho e volte aqui, pode ser? eu espero.
⁂
quando falo de inteligência artificial, na verdade estou falando da burrice humana.
atire a primeira pedra quem nunca quis um botão que instantaneamente materialize o que você imaginou dentro da sua cabeça.
sou assombrada o tempo todo por imagens que não tenho a habilidade técnica suficiente para torna-las visíveis pros outros. mas continuo tentando. tem desenhos que levam inúmeras tentativas em 1 ano pra sair, outros 1 mês, 3 dias, 1 hora.
claro que o botão mágico da inteligência artificial materializa uma arte que não é minha. pra começar, a IA não me diz de onde pegou suas referências, porque escolheu elas e como misturou. depois de juntar tudo num liquidificador, ainda passa um verniz plástico estranho na tentativa de uniformizar os estilos dos artistas de quem roubou.
⁂
aos dezessete escrevi grandão com marcador vermelho no espelho do meu guarda-roupa "love the process", sem saber que o processo envolveria eventualmente lesionar a mão depois de desenhar durante finais de semana sem parar.
no início de junho quando eu e a ilustradora Karina Pamplona sentamos numa mesa do café do Oi Futuro no Flamengo, ela disse "às vezes eu odeio o processo criativo" e eu interrompi “eu tô escrevendo uma newsletter sobre isso!!!”
no início desse mês a Karina escreveu uma edição bonita na newsletter dela, que eu leio como: “que eu odeio processo criativo o que, Joanna? tu tá é doida”. é boa, vai lá ler.
⁂
curioso como a gente gosta de ver vídeo de processo artístico na internet. sempre com muita materialidade: ninguém quer vídeo acelerado no programa que você usa pra desenhar mas sim o asmr do barulhinho de lápis de cor no papel. também queremos uma mesa bonita, bem iluminada, um espaço bem decorado, os materiais novinhos e caros.
num vídeo da internet, não há erros. o truque é você já saber o que vai desenhar, já ter o rascunho de antemão mas apagar até ele ficar invisível pra câmera.
basta um minuto refletindo a respeito e chegamos a conclusão óbvia de que isso não é exatamente o processo criativo de ninguém, mas uma grande encenação. o vídeo em si é mais um produto de arte — por isso tudo precisa ser bonito, o artista, o cenário, o resultado.
mas fantasio em gravar meu processo: sexta-feira depois do trabalho CLT, de pijama na madrugada. abro o caderninho que junto ideias depois de tomar banho ou andar na rua. escolho uma e começo a rascunhar.
fico frustrada! esqueci que tenho que aquecer a mão antes ou tudo sai ruim. gatos sobem na mesa e pisoteiam o notebook. o notebook começa a atualizar e vou na cozinha fazer um lanche. volto, notebook lento. fico um tempão procurando referência na internet. volto a desenhar.
fico frustrada! esqueci que tenho que aquecer a mão antes ou nenhum traço fica bom. daí fico 1h desenhando coisa ruim de propósito antes de desenhar as coisas mais ou menos boas. quando a mão ficou afinadinha, estou com sono demais pra continuar.
fico frustrada! vou dormir e amanhã tento de novo.
⁂
em um curso de lettering que fiz há muitos anos atrás, a professora reclamou que meu traço era de escovar cachorro. uma linha que era pra ser do ponto 1 ao 2 fluída, ganhava alguns pontos até lá. várias linhas iam inclinando em direção a trajetória da curva como pelos de cachorro.
foram muitos anos pensando que não é um bom traço pra se ter quando desenha; que me falta é confiança na linha pra seguir sem pausas a trajetória até o final; tudo isso pode ser verdade, mas escovar cachorro também é bom.
⁂
estou redesenhando o mesmo quadrinho desde fevereiro e aos poucos ele está se tornando algo completamente diferente. “faz parte do processo”, você vai dizer, “as coisas irem mudando”. faz parte do processo também a gente ir mudando a medida que faz as coisas. a primeira página que você desenha nunca é no mesmo nível da última. quadrinistas traçam algumas estratégias pra ninguém perceber e eu leio caçando os rastros.
uma vez alguém me disse “eu nunca te impediria de desenhar sobre mim, sempre soube que você desenharia! estava no contrato” e eu respondi “mas não desenhei, eu te protegi”. e desde então eu venho pensando sobre a dificuldade de desenhar coisas que eu sinto que ainda estão acontecendo como se fosse impossível descrever a água enquanto se afoga. e como o simples ato de desenhar acaba matando algo, no registro unidimensional de uma pessoa ou uma situação.
traçar linhas com o lápis com o mesmo gestual de quem enfia uma faca. um ato de misericórdia, talvez.
⁂
cultivo obsessões temáticas: se estou vendo The Bear (série de comédia dramática ambientada num restaurante) lentamente um ep por semana, também estou vendo os realities Masterchef, Secret Chef e absolutamente qualquer filme que lide com gastronomia/culinária/restaurantes.
teve um episódio na temporada atual de Masterchef que a chef Helena Rizzo, ao avaliar um prato, exclamou “cozinha não é receita, é gesto!” e a frase ficou ecoando na minha cabeça. em The Bear, são bonitos os closes das mãos mostrando os personagens cortando ou descascando ou picando algo (até pensei que pudesse ser dublê de mão, mas pesquisando descobri que os atores fizeram treinamento em cozinhas profissionais).
o quanto de memória muscular tem em coisas que a gente costuma pensar que são predominantemente de ordem racional ou emocional? será que não cozinho bem porque ainda não dominei os gestos necessários? como bater claras em neve, como cortar na direção da fibra, como sovar o pão.
e aí de nada adianta o paladar bom: detectar a noz moscada no molho branco no macarrão da minha tia ou sentir quando o limãozinho fez a diferença no queijo com banana (fica aqui essa dica), falta a prática. o gesto certo sem pensar. falta não ter que pesquisar no google a melhor maneira de descascar cada coisa antes de pegar a faca.
se eu roubar a frase da Helena Rizzo pra falar “desenho não é tutorial, é gesto” e pensar nos inúmeros vídeos de aquarela que eu assisti quando era mais nova. para não arruinar uma folha tem que entender como segurar o pincel e qual intensidade aplicar de tinta e água. e depois esperar a camada secar de uma aguada pra outra com a mesma ansiedade de quem espera a camada do bolo sair do forno.
⁂
“Quando a receita me manda ‘derreter a manteiga numa pequena panela e adicionar a farinha’, sou capaz de segui-la só porque ela dialoga com minha experiência anterior de derreter e mexer, de lidar com substâncias como manteiga e farinha, e de encontrar os ingredientes e utensílios básicos nos vários cantos da minha cozinha. Os comandos verbais da receita, em outras palavras, extraem seu significado não de sua ligação a representações mentais na minha cabeça, mas de seu posicionamento dentro do contexto familiar da minha atividade doméstica. (…) Cada comando é colocado estrategicamente em um ponto que o autor original da receita, olhando para a experiência prévia de preparar o prato em questão, considerou ser uma junção crítica na totalidade do processo. Entre esses pontos, no entanto, espera-se que o cozinheiro ou a cozinheira seja capaz de achar o seu caminho, com atenção e sensibilidade, mas sem depender de outras regras explícitas de procedimento – ou, numa só palavra, habilidosamente. Assim, a informação no livro de receitas, em si mesma, não é conhecimento. Seria mais correto dizer que ela abre caminho para o conhecimento, por estar dentro de uma tarefagem até certo ponto já familiar em virtude da experiência anterior. Apenas quando é colocada no contexto das habilidades adquiridas através desta experiência anterior, a informação especifica uma rota compreensível, que pode ser seguida na prática, e apenas uma rota assim especificada pode levar ao conhecimento.” — Tim Ingold em Da transmissão de representações à educação da atenção (só voltaria a universidade se fosse pra fazer uma disciplina inteirinha sobre Tim Ingold)
⁂
atire a primeira pedra quem nunca quis um botão que instantaneamente te diga exatamente o que você precisa botar pra fora. mas não existe, então a gente começa a traçar uma linha sem saber onde ela vai terminar ou começa um texto pra falar de desenho e quando vê tá falando de cozinha.
Que lindo texto, Joanna ✨
A Luísa Lacombe e eu comentamos sobre processo criativo ontem, e ela falou muito dessa sua edição da suave porra nenhuma, que tava na minha caixa de email e eu ainda não tinha sentado para ler. Nossa conversa fez ainda mais sentido, e é muito bom conseguir conversar sobre processos criativos sem o discurso vencedor, de quem só faz certo, quem tá sempre pronto para criar e tudo funciona. Acho que como artistas precisaríamos conversar muito mais sobre os perrengues do processo criativo. Nos cursos de roteiro sempre digo aos meus alunos ENTENDEREM o erro. Não é só aceitá-los, é entendê-los, que é onde mora nosso progresso. Deliciosa essa edição, Joanna.