oi leitores da antiga newsletter q q tá acontecendo no tinyletter, se você está recebendo esse e-mail o seu eu-de-cinco-anos-atrás gostava de ler o que eu escrevia. ou: oi novos leitores da suave porra nenhuma, vocês fazem ideia de onde se meteram quando se inscreveram aqui?
daqui de 2023 mando um aceno pra joanna de 2019 trazendo os 10 textos que escrevi naquela época pros arquivos do substack. fique a vontade se quiser espiar o passado.
nesse longo hiato estive brigando comigo mesma, argumentando que todo texto que eu escrevia poderia virar um quadrinho. quatro anos foi um bom tempo pra descobrir que “não, porque nem todo texto. mas alguns sim!”.
voltei.
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como saber se você está vivendo dentro de uma tragédia grega
você é miserável e infeliz.
todas as coisas realmente importantes da sua vida acontecem fora do palco, sem ninguém assistir, então você precisa explicar pra plateia porque é tão miserável e infeliz.
logo ali atrás, um coro comenta cada palavra que você diz, conspira sobre o que você sente, espalha seus segredos, às vezes simpatiza às vezes debocha das burrices que você faz.
deuses querem intervir no seu destino, brigam entre si, tentam te seduzir, aparecem em forma de animais.
você nunca se refere a nada nem ninguém pelos nomes exatos, sempre usando apelidos, gírias ou expressões vagas. o esforço de criar uma linguagem metafórica está te enlouquecendo pouco a pouco.
você está preso a uma pedra. você matou seu pai. sua mãe te mutilou. você fodeu um deus. você é miserável e infeliz.
traduzir a tradutora
talvez eu esteja lendo Anne Carson demais porque me vi digitando no google “como saber se você está vivendo dentro de uma tragédia grega”. também não ajudou muito ver Ilíada no teatro ou maratonar Succession (rei lear de playboy).
no prefácio de “Tragedy: A Curious Art Form”, a Carson se pergunta “por que a tragédia existe?” e ela mesma responde:
“porque você está cheio de raiva. por que você está cheio de raiva? porque você está cheio de luto. (…)
luto e raiva – você tem que conter isso, colocar uma moldura ao redor, onde isso possa se desenrolar sem você ou sua família morrerem no processo. existe uma teoria que assistir insuportáveis histórias sobre pessoas perdidas em raiva e luto é bom pra você – pode te limpar da sua própria escuridão. você quer ir até o poço do sacrifício sozinho? não muito. mas e se um ator pudesse fazer isso por você? não é por isso que chamamos eles de atores? eles agem por você. você sacrifica eles. e esse sacrifício é um modo de profunda intimidade de você com a sua própria vida. nele, você observa [a si mesmo] encenar a organização presente ou possível de sua natureza. assistindo, você pode estar ciente de sua própria consciência desta natureza como nunca está no momento da experiência. o ator, ao reiterar você, sacrifica um momento de sua própria vida para contar a você uma história sua.”
sim kendall roy, me mostre como eu vou ficar quebrada quando meu pai m*****.
ana cristina cesar disse: por que recusamos ser proféticas?
existem essas situações na minha vida que eu sinto que sei onde vai dar. fico dizendo pra mim mesma que na verdade eu não sei é de nada, que minha intuição é paranoia mal medicada, que existe livre-arbítrio, que eu não sei nada do outro, que eu não sei nem se o desfecho é bom ou ruim… mas só parece inevitável.

a minha parte eu fiz. falei mais do que devia em todas as oportunidades que eu tive pra abrir a boca. tirei tarô no aplicativo de celular porque não quero decepcionar minha tarólogamiga com pergunta ruim. pesquisei o resultado em um fórum em inglês cujos posts são de 5 anos atrás. o tempo é sim uma ilusão.
enquanto a outra pessoa envolvida tá se debatendo no cantinho dela, estou aqui com o carro ligado dando voltas e voltas no quarteirão e ocasionalmente gritando: “get in loser, vamos viver até o final do nosso mito”

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pra ler ouvindo hadestown (sério, ouve aí)
vou contar resumidamente o mito pra quem não conhece: o bardo Orfeu encantava a todos tocando sua lira. ele e a ninfa Eurídice são apenas recém casados quando ela é picada por uma cobra na beira do rio e morre. tomado pela dor insuportável ele decide ir até o submundo atrás dela. com a música conquista Hades e Perséfone, que permitem que Eurídice volte com ele sob uma única condição: ele deveria andar na frente e não olhar para ela até que ambos tivessem alcançado o mundo superior.
ele aceita e vai andando tranquilamente com Eurídice o percurso inteiro, mas ao cruzar o portal do mundo dos vivos se vira pra olha-la. ainda faltando um passo pra ela, sua alma desaparece na sua frente.
por que você acha que Orfeu se virou pra ver Eurídice?, eu adoraria fazer essa pergunta antes de flertar com qualquer pessoa que eu encontro mas evito.
no livro “Banquete” Platão acha que Orfeu olha pra trás porque é burro e teoriza que os deuses infernais apenas lhe deram uma mera aparição de Eurídice, uma ilusão. e que este seria um covarde pois em vez de escolher morrer para estar com quem amava, zombou dos deuses ao tentar trazê-la de volta viva.

já o poeta romano Ovídio em “Metamorfoses” narra o olhar pra trás como um ato de puro amor: “Eurídice, morrendo agora pela segunda vez, não proferiu uma reclamação contra seu marido. o que haveria de se queixar, se ela havia sido amada?”
na ópera de Christoph Gluck, “Orfeu e Eurídice”, ela sequer saberia que ele estaria proibido de olhar pra trás e ele também não poderia contar a ela, então ela presume que ele não a ama mais. Orfeu olharia pra trás pra assegura-la do seu amor.
em uma outra ópera mais antiga, “L’Orfeo” de Claudio Monteverdi apresenta no seu quarto ato um Orfeu enganado pelo seu ouvido humano. com seu ouvido finito, fraco e defeituoso ele teria pensado ouvir um barulho e se virado. há versões por aí que especulam que na verdade ele não teria ouvido é nada e teria dúvida se Eurídice ainda estaria o seguindo.
no filme “Retrato de uma Jovem em Chamas” de Celine Sciamma a pintora Marianne, a retratada Heloise e a jovem Sophie debatem essa história. Sophie se pergunta por que raios ele teria olhado pra trás sabendo o que aconteceria, Marianne especula se ele teria feito a escolha de viver com a memória de Eurídice, mas Heloise argumenta e subverte todas as histórias que contam tudo pelo ponto de vista de Orfeu: talvez foi Eurídice que disse pra ele virar.

por que Eurídice queria que Orfeu olhasse pra ela?, você me pergunta.
porque ela precisava ser vista.
ou lida, tanto faz aqui.
mt feliz de ter encontrado sua escrita, mesmo q mais de um ano dps <3
Eu amo o jeito que tu escreves, intensa e dionisíaca, mas ao mesmo tempo com um sorriso que se torce no canto e amarga um pouco a boca, é um vinho cheio de taninos, vou ler Anne Carson para poder te impressionar.